Para driblar trânsito, corrida vira meio de transporte em grandes cidades

21/03/2015 -  IG Último Segundo

Leia entrevista com Sílvia Stuchi

Muito tem se falado sobre mobilidade urbana nos últimos anos. Cidades como a capital paulista têm investido pesado na execução de obras de ciclovias e ciclofaixas, que incluem nas opções de locomoção pela metrópole as bicicletas lado a lado no trânsito caótico com transporte público e veículos particulares. Mas um grupo de cerca de 150 pessoas espalhadas pelo Brasil têm inovado na forma de ir e voltar ao trabalho e aos estudos. E por meio da corrida.

É o propósito do Corrida Amiga, projeto que desde maio do ano passado incentiva pessoas a se locomoverem pela cidade por meio de dicas de trajeto, de como se vestir e de como se comportar entre buracos, ladeiras e pedestres. "Eu uso bike às vezes, mas procuro priorizar sempre a corrida. Hoje, por exemplo, voltei da USP Leste, desci na Sé e depois fui até Pinheiros correndo. Presto consultoria na Vila Mariana, vou correndo. Faço em média de 8 a 10 km de trajeto assim, ora no caminho de ida ora no de volta", conta Silvia Stuchi Cruz, 30 anos, gestora ambiental e criadora do projeto. "Já faço uso deste meio de transporte desde 2012 e tem sido uma maravilha."

A inspiração de Silvia veio do tempo em que viveu nas cidades de Lille, na França, e Helsinque, na Finlândia. Em ambas a jovem notou que, diferente da realidade no Brasil, as pessoas utilizavam a corrida para se locomover pela cidade e não apenas como prática de exercício. Logo, ela estava fazendo o mesmo. E, ao retornar a São Paulo, ficou com vontade de incentivar outros a se juntarem à novidade. Hoje, o projeto já se espalhou e conta com participantes em municípios dos Estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Goiás, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.

"Não é fácil correr pela cidade, tem de ser alguém acostumado a isso. Mas o que me faz ultrapassar as barreiras impostas pelo caos das ruas é a otimização do tempo", conta Silvia. "Já fiquei 1h20 para ir de Pinheiros, onde moro, ao Butantã. Correndo, por outro lado, levo sempre 40 minutos. É um tempo precioso que, nos dias atuais, não dá para desperdiçar. E que acaba sendo usado para fazer algo saudável e adiantar aquilo que eu talvez fosse fazer depois, já no meu horário de descanso."

Corredor amador desde 2011, o professor de biologia Paulo Adriano de Oliveira, 40 anos, aderiu à prática recentemente, em meados do ano passado. Cansado do trânsito caótico e dos veículos dos quais precisava desviar quando se locomovia de moto ao trabalho, ele não se incomodou em aumentar três vezes seu tempo de volta para casa. Pelo contrário, descobriu um prazer que o leva a iniciar os momentos de descanso sempre com uma sensação de leveza e tranquilidade.

"Apesar das calçadas horríveis, adoro fazer o trajeto correndo. Sinto-me seguro, me respeitam, diferente das vezes que tentei ir de bike. E você vai cumprimentando as pessoas, faz amizades com outros corredores. É muito legal", conta Oliveira, que aproveita os trajetos para treinar para as competições das quais participa quase todos os fins de semana. "Nunca tinha pensado em substituir o carro pelos pés. E vou com segurança... A Silvia me deu os toques de como me vestir, usando coletes chamativos durante a noite, como me comportar ao travessar as ruas. Também planejo: se amanhã eu quiser ir correndo ao trabalho, por exemplo, hoje já deixo roupas por ali para me trocar ao chegar."

Netbook na mochila

Criado em parceria com Renato Mello, idealizador do site sobre corrida "Papo de Esteira", o Corrida Amiga é fundamentalmente voltado para pessoas acostumadas a correr. Para isso, elas devem se inscrever no site do projeto como voluntários, para ajudar interessados, ou como "alunos", para serem instruídos. Além de instruções de como se vestir e fazer o trajeto, os "corredores amigos" explicam como fazer a mochila com as roupas necessárias e encaixá-la nas costas, como se comportar em vias lotadas e, claro, como pisar no asfalto irregular de grandes cidades. Quando não há alguém para passar as instruções em alguma cidade ou trajeto específico, as dicas muitas vezes são dadas por telefone ou email.

"Usar fones de ouvido, por exemplo, é um problema, porque se perde a atenção. Tem também o problema de tomar banho, que acaba impedindo muita gente de ir ao trabalho correndo por causa do suor excessivo, até porque nem todas as empresas têm chuveiros para funcionários. A solução, para alguns, pode ser a de se lavar na torneira, ou mesmo usar apenas o exercício somente para o caminho de volta para casa", explica Mello. Ele usa a corrida como deslocamento pela cidade há quase quatro anos.

"Não tenho mais carro. Minha esposa me traz ao trabalho e volto correndo. Não que eu seja um reacionário, eu o uso veículo aos fins de semana, quando preciso. Mas no dia a dia, chovendo ou fazendo frio, não troco a corrida por nada. Não importa o que acontecer, em 40 minutos estou em casa."

Foi o que incentivou Raquel Couto, 29 anos, a colocar a prática em sua rotina. Todos os dias ela levava cerca de 1h30 para ir da Vila Madalena, onde mora, ao serviço como coordenadora de Segurança do Trabalho, na Vila Olímpia. Além do tempo, havia o estresse das baldeações, dos vagões lotados e da demora de trens da CPTM e do metrô. Corredora de pequenas provas de 5 km cerca de quatro vezes por ano, ela hoje leva apenas 50 minutos para cumprir os 6,8 quilômetros de trajeto ao trabalho a pé.

"A primeira vez que caminhei ao trabalho foi no dia em que houve uma paralisação de ônibus e trens e não se conseguia pegar um táxi, pois estavam todos cheios. Achei bastante agradável ir caminhando e, surpreendentemente, mesmo sem correr (já que neste dia eu não tinha a mochila apropriada), cheguei em 1h20. A partir daí, combinei a corrida amiga com a Silvia", conta Raquel. "É bastante simples e, após a terceira corrida, eu já havia sido indicada como instrutora para guiar uma corredora amiga que estava iniciando. Passamos a correr juntas semanalmente e acabamos nos tornando amigas."

Mesmo voltado para pessoas acostumadas a correr, aqueles mais sedentários também podem aderir ao "meio de transporte". Na falta de fôlego e preparo físico, Silvia dá o conselho de iniciar a prática com caminhadas para depois evoluir para a corrida. "A pessoa tem de ir aos poucos, precisa se acostumar", ela diz. "Se colocar o exercício na rotina, com o equipamento certo, em pouco tempo a pessoa estará dando seus trotes por aí. Corro para fazer tudo e até netbook na mochila eu levo. Então é bastante possível."